Xuxa tem uma carreira musical forte,
consolidada e cheia de sucessos; ninguém duvida disso. Goste-se ou não, todo
mundo sabe cantar pelo menos uma meia dúzia de músicas dela. E o que dizer das
músicas esquecidas, não trabalhadas, aquelas que a gente ouve e pensa “nossa, tem essa, nem lembrava...” ou, de
forma mais impaciente, diz “por que isso
está aí, gente? Deviam ter colocado a música X ou Y no lugar...” Pois é,
todo disco de Xuxa (e de qualquer artista) tem seu patinho feio: aquela faixa que ninguém dá nada por ela, mas que
esconde uma bela história, muitas vezes mais importante que a daquela faixa que
tocou mil vezes nas festas.
Poderíamos elencar a faixa “Patinho
Feio” de cada álbum da loira: Peter Pan
(Xou da Xuxa – Som Livre, 1996), Nana
Caxuxa (Xou da Xuxa Seis – Som Livre, 1991), Vaqueiro, Vai Buscar Meu Boi (Tô de Bem Com a Vida – Som Livre,
1996) para mostrar que tem muita música injustiçada que perde a atenção dos
ouvintes pelo simples fato de sair do padrão, da “zona de conforto” a que nos
acostumamos ao longo dos anos.
Cada vez que o cantor cria/grava
algo novo ele expõe um de seus “filhotes” a esse risco: “Será que o público vai entender o que eu quis com isso? Vai
compreender por que essa música está lá?” Não é fácil...
Voltando à carreira musical de
Xuxa: ela se lançou internacionalmente no ano de 1990 com a edição do álbum Xuxa (Globo Discos). Tiro certo! Todo
mundo já sabia o que funcionou no Brasil e para o repertório só foram
selecionados os hits dos primeiros discos em português da loira. A fórmula
seguiu por mais dois anos: Xuxa 2 (1991) e Xuxa 3 (1992) – esse último teve Sensación de Vivir, que não era
originalmente de Xuxa, mas já era conhecida do público. Todos sem “patinhos
feios” no repertório.
Os três primeiros discos em espanhol trazem versões do que já tinha dado certo no Brasil
Em 1994, mesmo sem programa
televisivo fora do país, Xuxa seguiu com sua carreira fonográfica no mercado de
língua espanhola. A loira lançou o álbum “El
Pequeño Mundo”(Polygram), que foi o início de uma ruptura com a fórmula de
apenas trazer para os “países de habla hispana” o que já era sucesso certo.
"El Pequeño Mundo": o primeiro a arriscar uma nova fórmula
Em meio a versões de músicas do
seu disco Sexto Sentido (Som Livre, 1994), Xuxa apresentou faixas nunca antes
gravadas por ela em sua língua materna; algumas versões e outras inéditas.
Saiu-se da “zona de conforto” e apostou-se no novo e, claro, deu margem ao
nascimento de “patinho feios”, ou melhor, “patitos
feos”. E não é que o “patito feo” de “El
Pequeño Mundo” é literalmente um pato?
Quer dizer, “Un Pato”. A faixa n.6
do disco é uma versão em espanhol para um dos maiores sucessos interpretados
pelo cantor brasileiro João Gilberto, o pai da bossa nova.
Aprte o play e ouça a faixa
Aves no Samba
O Pato foi composta por Jayme Silva e Neusa Teixeira. Na realidade,
não foi bem “O Pato”, o título original da canção era “Aves no Samba”. Jayme era sapateiro, tocava pandeiro, compunha nas
horas vagas e tinha o costume de namorar num parque onde havia um laguinho para
patos e marrecos se esbaldarem. “Ainda
vou fazer uma música com esses patinhos” teria dito Jayme, segundo o livro
“Chega de Saudade” (Companhia das
Letras, 1990) de Ruy de Castro, que conta a história da Bossa Nova.
A música passou a fazer parte do
repertório do grupo “Garotos da Lua”
no final dos anos 40. O grupo era inspirado no estilo dos grupos vocais
americanos e entre seus integrantes estava o cantor e compositor João Gilberto.
Garotos da Lua: os primeiros a interpretar "O Pato". À direita, o primeiro compacto de João Gilberto com o grupo, lançado em 1951
Foi por sugestão de João Gilberto
que Jayme e Neusa mudaram o nome da
música para “O Pato” e também foi João o responsável pela primeira gravação
da música. Ele a incluiu no seu segundo
álbum “O Amor, O Sorriso e A Flor”
(Odeon), lançado em 1960.
João Gilberto à época de seu registro de "O Pato" no LP "O Amor, O Sorriso e A Flor"
A Bossa Nova e O Pato
perfeito
O tema que narrava a aventura do quarteto de penas – pato, marreco,
cisne e ganso – que queria entrar no samba e tentava ensaiar “Tico-Tico no
Fubá” à beira de uma lagoa se tornou uma das canções mais importantes da Bossa
Nova, que começou a nascer no final da década de 50.
João Gilberto é conhecido pelo
seu perfeccionismo extremo na busca pelo som mais limpo. Ele chegou a ensaiar
“O Pato” por seis (!!!) meses antes de gravá-la em seu disco
Vejam esse trecho do livro “Chega de Saudade” (Companhia das Letras, 1990) de Ruy de Castro:
O Gato e o Pato
Já com o status de uma das
músicas mais emblemáticas da bossa Nova, O Pato também se tornou alvo de lendas. Conta-se que o gato da esposa
de João Gilberto, chamado “Gato”, se
suicidou pulando da janela do apartamento do cantor depois de não mais aguentar
ouvir o cantor ensaiando a música. Na verdade, o bichano resolveu dormir na
janela sem redes do apartamento do 10º andar e, numa espreguiçada, escorregou
para a morte.
"O Gato Suicida": lenda sobre o gato que não aguentava mais "O Pato"
A predileção das crianças
E por que Xuxa – ou Michael
Sullivan, produtor do álbum “El Pequeño Mundo” –, iria se interessar por essa
música? Xuxa sempre deixou claro que nunca foi cantora e sempre foi consciente
de suas limitações vocais, por que gravar algo já tão marcante na MPB e que,
mesmo sendo destinado ao mercado estrangeiro, poderia fazer com que surgissem
criticas aos seus dotes vocais frente a tão importante música? Simples! O Pato
é uma música que conta com a simpatia
dos baixinhos desde seu nascimento.
Na contracapa do disco de João
Gilberto existe uma carta de Tom Jobim impressa, onde o maestro e compositor
relata o processo de criação do disco. Ao final temos um PS:
E
tudo foi feito num ambiente de paz e passarinhos.
P.
S. - As crianças adoraram "O Pato".
Antonio
Carlos Jobim
Tom Jobim deixando claro qual era a faixa preferida dos seus "baixinhos"
Apesar de “El Pequeño Mundo” não
ser um disco voltado aos “bajitos”, uma característica de Xuxa em toda sua
carreira é que ela nunca deixou de incluir pelo menos uma faixa para os
pequenos em seus álbuns.
A Versão de Xuxa
A faixa em espanhol é uma adaptação da letra original e com isso
algumas coisas mudaram na história do quarteto de aves cantoras.
Originalmente temos como protagonistas
o pato, o marreco, o ganso e o cisne. Como em espanhol não temos um termo
próprio para designar o marreco (geralmente usam “pato silbador), a solução foi
trocá-lo pelo flamingo. Antes as aves queriam fazer um samba e para isso iam ensaiar o “Tico-Tico
no Fubá” (famosa canção brasileira de 1931, imortalizada na voz de Carmen
Miranda). Para a versão em espanhol, o pato e o flamingo entram na bossa nova, “el ritmo de moda”. Uma
adaptação perfeita! Como dissemos, João Gilberto é considerado o pai da bossa
nova e foi por ele que a música ficou conhecida no mundo. Uma simples e
significativa atualização.
Sai o marreco, entra o flamingo
Temos um novo personagem na
história: um cachorrinho que assusta
o quarteto com seu latido e faz com que todos corram para água para se salvar,
mas no fim todos riem da situação. Na canção original não havia cachorro e os autores debocham da desafinação do grupo,
embora tenham gostado do final quando todos cantam em coro.
E até um cachorro apareceu...
Infelizmente não temos a informação de quem fez a adaptação da letra para o espanhol. O encarte do CD é
falho nesse aspecto. Além de não mencionarem o responsável ainda escreveram o
nome da autora errado. Uma pena.
A Neusa virou Nevsa no disco da Xvxa... Ops
Apenas na versão promocional, em
LP, o nome da autora foi escrito corretamente, mas permanece a omissão quanto
ao nome de quem adaptou a letra.
No LP estava tudo certo, só que ele era promocional... quase ninguém viu.
Natalia Lafourcade
Começamos nosso texto falando que
as músicas patinho feio muitas vezes nem são lembradas, certo? Embora Xuxa
tenha gravado a música em espanhol lá em 1994, a versão em espanhol mais
lembrada é a da cantora mexicana Natalia Lafourcade. A moça gravou sua própria versão em 2004, dez anos depois de Xuxa, para integrar a trilha sonora do filme mexicano “Temporada de Patos”. Curiosamente o filme não tem nada de infantil.
A mexicana Natalia Lafourcade gravou "Un Pato" especialmente para o filme "Temporada de Patos", em 2004
A versão de Natalia é totalmente diferente da original e também da feita por Xuxa. O quarteto é formado pelo pato, um gato (!!!), um ganso e um cachorro. Os quatro se juntam para cantar, mas só o pato desafina, os outros decidem então empurrá-lo na água e ele foi embora nadando.
Quanto ao marreco, o cisne e o flamingo nunca mais se ouviu falar deles...
Adriana Calcanhotto
Adriana Calcanhotto em 2004
apresentou ao público sua Adriana Partimpim. Partimpim era o apelido da cantora
quando criança e foi esse o nome que ela usou nos seus discos destinados ao público
infantil. Foram três, o último – Partimpim Tlês – lançado em 2012, trouxe a
gravação da cantora gaúcha para “O Pato”.
Partimpim Tlês (Sony Music, 2012) trouxe a versão de Calcanhotto para o sucesso de João Gilberto
Obviamente, foi recebida com aplausos
pela crítica.
Na fauna
de Partimpim Tlês, O Pato (Jayme Silva e Neusa Teixeira,
1959) - sucesso de João Gilberto - cai moderninho no samba, com direito à
reprodução da voz do próprio, esboçada por Adriana Calcanhotto (a criadora da
sapeca criatura Partimpim) com o auxílio do pistom cretino idealizado por
Walter Smetak.
(Trecho da
crítica de Mauro Ferreira, publicada em 17/10/2012)
Patinho Feio
Chama-nos atenção o fato de como
Xuxa realmente é o Patinho Feio da música infantil. Ela é, de longe, a que mais
vende discos no segmento e ainda assim encontra a resistência da crítica
especializada. No caso específico, sua versão para O Pato não foi lançada no
mercado nacional, mas também sequer foi lembrada por fazê-lo num disco para
crianças.
Podemos ir mais além. A Revista
Veja publicou, ainda sobre a incursão de Adriana no universo infantil, em 2009:
Depois dos
anos 80, dominados pelo ilariê pasteurizado de Xuxa e assemelhadas, artistas
como Zé Renato, Adriana Calcanhotto e grupos como Palavra Cantada reavivaram
uma tradição que remonta até o compositor carioca Heitor Villa-Lobos
(1887-1959), autor de A Prole do Bebê.
Xuxa: pioneira em muitas questões, mas preterida pela crítica
Curiosamente no repertório de
Partimpim Tlês está também Acalanto, música gravada por Xuxa em 1985 no seu
disco “Xuxa e seus amigos” (Philips).
Não adianta... Xuxa pode gravar o que quiser, fazer o disco tecnicamente mais perfeito que ela sempre será preterida pela crítica. Não que Xuxa precise da crítica para vender disco, mas só queríamos entender por que para valorizar o trabalho de alguém o de Xuxa tem que ser alvo de desdém...
Reconhecidas ou não, bem
escolhidas ou não, as faixas “patinho feio” estão aí esperando que alguém conte
sua história e mostre que elas podem, sim, ser mais interessantes do que
parecem.
Não esperavam tanta coisa sobre um pato, não é mesmo?
Comentários
2 Comentários
2 comentários:
Anônimo
disse...
Entender os críticos é bem simples "se faz sucesso, vamos por defeito", esse infelizmente é o trabalho deles. Até a própria Adriana Calcanhoto desdenhou as músicas infantis dos anos 80/90, não lembro direito o que ela disse, mas disse que as musicas dela eram melhores que as existentes, tinham conteúdo.
até pensei na época, ok Adriana, então vai ouvir as músicas da Xuxa direito, porque tem mais ensinamentos entre as linhas do que qualquer outra musica já gravada pelos "grandes cantores" da MPB.
Arco-Íris = Cromoterapia Lua de Cristal, Querer é poder = O Segredo (lei da atração) Viver, Quem sabe um dia... = expansão da consciência Boto Rosa = preservar a natureza Leitura = incentivo a leitura
Só uma correção (se é que chamo de correção) sobre não ter creditado a adaptação da versão:
se for lá nos créditos de onde foi gravado, mixado, coro e essas coisas, tem escrito "Direccion de voz en Español: Graciela Carballo". vou chutar que a diretora de voz também fez a versão dessa música em espanhol